quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Guimarães em Tempo de Guerra (Fim)




Com o fim da Maria da Fonte e da Patuleia, em 1847, o território vimaranense não mais conheceu a guerra no sentido clássico do termo (se é que pode classificar-se ou identificar-se a guerra com um determinado padrão num período relativamente longo). É verdade que, alguns anos após a Maria da Fonte, em 1862, os vimaranenses tremeriam com os tumultos da “Maria Bernarda”, em que o povo se manifestou novamente contra o pesado regime fiscal. Já nos finais do século XIX, novos tumultos surgiriam, desta vez nos mercados vimaranenses, contestando o aumento de preços dos géneros alimentares. Contudo, a guerra propriamente dita não foi esquecida em Guimarães. Ainda nos finais do século XIX, alguns militares vimaranenses ou pertencentes ao Regimento de Infantaria 20 aqui aquartelado, participaram nas duras campanhas de Angola e Moçambique. Com o século XX e com a República, os arredores de Guimarães conheceriam uma pequena escaramuça entre militantes monárquicos e republicanos, travada em Julho de 1911, havendo apenas alguns feridos. De Guimarães, pela mesma altura, sairiam alguns militantes monárquicos para engrossar as fileiras de Paiva Couceiro, comandante da resistência monárquica, que, por esta época, actuou nas zonas fronteiriças do norte do país. Em 1917, Portugal enviava os seus homens para a Flandres, onde morreram aos milhares. Há notícia de terem participado bastantes vimaranenses na Primeira Guerra Mundial. Alguns teriam a sorte de voltar à sua terra natal ilesos, outros regressariam mutilados ou loucos, mas muitos nunca voltariam a casa. Apenas um ano após a Primeira Guerra Mundial, em 1919, os monárquicos voltavam à carga e, por um apenas um mês, Portugal conheceria a Monarquia do Norte. Poucos anos depois, em 1926, surge um novo golpe militar feito a partir de Braga, o 28 de Maio. Nos anos finais do Estado Novo vemos novamente vimaranenses na guerra, a Guerra Colonial. Para por fim ao Estado Novo, vemos também vimaranenses a juntarem-se aos Capitães de Abril. Recentemente, sabemos terem estado vimaranenses no Afeganistão. Afinal, a guerra não acabou, apenas não está à nossa porta…

Como é natural, foi precisamente quando a guerra nos bateu à porta que se tornou mais sentida. O século XIX português foi fustigado por guerras que marcariam a sociedade de então e que, em certa medida e numa determinada fase, foram um dos principais factores para o atraso português.

Em Guimarães correu sangue pelas ruas. Amontoaram-se corpos pelos caminhos. Encheram-se hospitais de feridos e moribundos. Criaram-se heróis e vilãos, hoje quase todos esquecidos. Lutou-se pela independência. Lutou-se pelo que se acreditava e pelo que era imposto acreditar-se. Lutou-se pela sobrevivência. Viveu-se e morreu-se, com ou sem glória.

Com a Guerra Peninsular os vimaranenses uniram-se para lutar contra o invasor francês e ganharam. Poucos anos depois, dividiam-se na Guerra Civil que opôs liberais e absolutistas. Os liberais venceram, mas as suas ideias não seriam, numa primeira fase, firmemente implementadas. Houve uma mudança muito brusca e demasiada violência de parte a parte. Apenas 12 anos depois, o “povo” faria uma das poucas revoltas genuinamente populares que sucedeu em Portugal nos últimos 200 anos: a Maria da Fonte. A “Revolução do Minho”, como também ficou conhecida, seria uma revolta de origem conservadora (exigia-se um regresso ao passado e o clero teve uma grande preponderância) a que mais tarde se viriam a juntar os setembristas, tendo dado origem a uma nova guerra civil: a Patuleia. Finda a Patuleia, terminava meio século de guerra.

Foi esse meio século de guerra e a sua ligação mais ou menos directa com o território vimaranense que se procurou abordar neste conjunto de textos intitulados “Guimarães em Tempo de Guerra”. Foram tempos verdadeiramente difíceis, passados nas nossas ruas e protagonizados por um povo que, afinal, nem sempre foi de “brandos costumes”.

Guimarães em Tempo de Guerra XII

Após vários episódios relevantes da Maria da Fonte e da Patuleia (a Guerra Civil que se seguiu à revolta da Maria da Fonte), nomeadamente a sangrenta tomada de Braga pelo Barão do Casal (afecto ao Governo) e a fuga do «rebelde» miguelista Macdonnell, o Padre Casimiro José Vieira, «Defensor das Cinco Chagas e Comandante Geral das Forças Populares do Minho e Trás-os-Montes», regressaria a Guimarães. O Padre-General movimentava-se com todo o cuidado e procurava informar-se das posições do inimigo (as forças governamentais que se opunham à «revolução» popular). O receio era justificado. Em finais de Dezembro de 1846, corriam rumores que o General Barão do Casal ao tomar Braga (apesar de ter tentado evitar o combate), tinha dado ordens para que não se poupasse ninguém. Outra má notícia assustava o Padre Casimiro: dizia-se que tinha fugido para Guimarães o seu aliado General Macdonnell (um excêntrico que Camilo Castelo Branco descreveu como um bêbedo, estando sempre «muito rubro, naquela bebedeira crónica lhe assistiu na vida e na morte»). E dizia-se ainda mais: que o Barão do Casal, após a rendição do «povo» de Braga, tinha dado ordem para que não se fizessem prisioneiros, passando mais de trezentos homens «a fio de espada».

As notícias do massacre de Braga perturbaram, certamente, o Padre Casimiro que, poucos dias depois, sem saber muito bem o que fazer, se dirigiu primeiro a Vieira e depois a Guimarães. Em Guimarães tinha estado na Casa do Arco o General Macdonnell, que, entretanto, viria a retirar-se com o seu exército para Amarante. Pouco tempo depois seria assassinado em Vila Pouca de Aguiar.

É neste contexto de uma guerra quase perdida, que o «Defensor das Cinco Chagas» faz «duas surtidas» a Guimarães. Dizia um seu companheiro que «trazia ordens para [irem] primeiro a Guimarães dar vivas ao Senhor D. Miguel (…) porque era lá onde estavam os grandes recursos [munições e pólvora]». O Padre Casimiro acedeu e passaria por Guimarães para «receber a pólvora». Recebida a pólvora, o «Defensor das Cinco Chagas», andaria pelos arredores de Guimarães sem disparar um único tiro. A excepção foi uma escaramuça perto de Gonça onde, segundo o relato do Padre, se formou um batalhão de voluntários que ele comandava e que se terá envolvido num tiroteio serrado com a tropa de Guimarães. O recontro é descrito da seguinte maneira: «começou então um pequeno tiroteio com as vedetas, vendo-se outra porção de serzinos cortar-nos a retaguarda pelo único ponto por onde podíamos retirar (…) como levávamos mui pouca pólvora (…) e estava a findar a que levávamos, tratamos de retirar a toda a pressa, mas no maior risco e cobertos de um dilúvio de balas despedidas a distância de um tiro de pistola, que não sei como pudemos escapar.». Apesar da dificuldade enfrentada, um dos correligionários do Padre Casimiro por alcunha o «Caneta» queria por toda a força almoçar ali mesmo, no local do combate com o «povo». Num gesto de lucidez, o «Defensor das Cinco Chagas» preocupou-se com a defesa da vida dos seus homens e não cedeu às reivindicações gastronómicas do «Caneta». Pouco tempo depois, o Padre Casimiro José Vieira abandonaria o «Caneta» porque este metia o seu exército «em contínuos perigos». Na verdade, sem líderes capazes (Macdonnell tinha morrido) e sem meios, o «Defensor das Cinco Chagas» pouco podia fazer. A guerra estava quase terminada. E o Padre Casimiro era um dos vencidos.

Enquanto General, o Padre Casimiro José Vieira não regressaria mais a Guimarães. E o mesmo aconteceria com a Patuleia, a segunda Guerra Civil que Portugal teria num espaço de 12 anos.

Guimarães em Tempo de Guerra XI


No meu último artigo, citava o escritor vimaranense Costa Freitas para pôr como hipótese do início da revolta popular da Maria da Fonte freguesias do concelho de Guimarães (S. Torcato, Balazar, Sande e Fermentões). Mas, para esta crónica, mais importante do que tentar descortinar o local onde a revolta teve início é tentar saber quais foram as consequências que a Maria da Fonte trouxe a Guimarães. Como já referi, a antiga ponte de Santa Luzia, então às portas de Guimarães, terá sido o local onde se sentiram os primeiros confrontos entre as «autoridades» e o «povo». Contudo, a escaramuça não terá tido consequências muito graves, visto que o Administrador do Concelho, João de Oliveira Cardoso, com alguns Cabos de Polícia conseguiu por cobro aos tumultos. Relativamente perto de Guimarães, no concelho de Vieira do Minho, há algum tempo que as mulheres andavam indignadas, juntando-se em grupos armados de paus e foices roçadouras. A causa da indignação era, fundamentalmente, o peso dos novos impostos (o povo chamava aos impressos dos impostos «bilhetas») a que se juntava a proibição de enterrar os mortos dentro das Igrejas. No fundo, como se verá adiante, eram alguns aspectos da implantação do liberalismo que estavam em causa e a incapacidade de uma parte considerável da população para os compreender e aceitar. É neste contexto que surge um dos principais guerrilheiros da época, o Padre Casimiro José Vieira. Ao chegar junto à Casa da Administração de Vieira do Minho e ao ver homens e mulheres a destruírem uma serie de papéis (queriam destruir as «bilhetas» dos impostos), o Padre Casimiro ficou apreensivo. Achava que a populaça estava certa nas suas reivindicações, mas não queria ver toda a documentação da Administração destruída de forma aleatória. Decidido a impedir que o caos se instalasse, toma uma decisão – de forma muito consciente – que iria mudar a sua vida: pega num «pau de fogo» e queima os «papéis da (…) desgraça». Ao tomar esta atitude, o Padre Casimiro torna-se, naturalmente, o líder dos revoltosos naquela região. Com o passar do tempo e depois de uma serie de peripécias, o Padre Casimiro começava a consolidar o seu poder e tinha já sob o seu comando um bando de revoltosos. Ao crescente poder do Padre Casimiro responderam as autoridades com uma ordem de prisão. Audacioso, o Padre não cederia e tentaria prender os homens do Regimento 13 que o tinham tentado prender.

Os motins populares começavam a ganhar a forma de uma nova guerra civil e, sem grande margem para dúvidas, o Padre Casimiro José Vieira era um dos principais líderes dos revoltosos. Comandava ataques a alvos pré-determinados e um deles foi à «tropa» aquartelada em Guimarães. Nas suas memórias, o Padre Casimiro descreve assim o sucedido: «resolvemos (…) atacar a tropa a Guimarães (…). Reparti-lhes a pólvora que tinha recebido (…) e depois de ouvirmos missa por ser dia santificado, marchamos pelas onze horas para Guimarães. Determinei que os [povos] de Fafe descessem pelo convento da Costa e atacassem primeiro, principiando a bater fogo pelo sul, os de S. Torcato, que estavam postados na Madre Deus, em seguida pelo norte, os das Taipas que vinham por Santa Luzia, pelo poente e eu marchei pelo centro (…) direito ao Cano. (…) Os guerreiros de Fafe meteram-se dentro do convento da Costa (…) e de lá começaram a fazer fogo pelas janelas, contra as ordens que eu havia dado e, por mais que lhes fizesse sinal para descerem a Guimarães, não fui capaz de os desentocar dali (…) tal era a coragem destes valentes!! E o mesmo aconteceu com os [homens] de S. Torcato! Vi-me obrigado a [disparar] contra o castelo [mas] como a posição em que me [pus] estava a descoberto, começaram a cruzar ali as balas sobre nós (…). Terminado o fogo retiramos para S. Torcato (…)».

Findo este episódio, o Padre Casimiro voltaria a Vieira do Minho, andaria pelo Bom Jesus, Braga, Póvoa de Lanhoso e, algum tempo depois, voltaria a entrar em Guimarães, para negociar com o Visconde da Azenha e com o Barão de Almargem, membros da Junta Revolucionária que se tinha formado em Guimarães (curiosamente o Barão e o Visconde eram de facções políticas opostas).

Antes de chegar a Guimarães, o Padre Casimiro pernoitou nas Taipas. Aí, influenciado por um padre amigo, assumiria um «título» pelo qual passaria a ser conhecido: Padre Casimiro José Vieira, «Defensor das Cinco Chagas e Comandante Geral das Forças Populares do Minho e Trás-os-Montes».

Em Guimarães, as coisas não correram bem entre o Padre Casimiro e o Barão de Almargem visto que estes dois homens tinham «sentimentos [políticos] diametralmente opostos». Pouco tempo depois o «Defensor das Cinco Chagas» voltaria para atacar Guimarães. (continua).

(imagem: retrato do Padre Casimiro José Vieira)

Guimarães em Tempo de Guerra X

Terminada a revolução de Setembro, a paz não duraria muito tempo. Em 1846, começaria uma «revolução» popular (talvez uma das poucas revoltas portuguesas genuinamente populares) que ficaria conhecida por Maria da Fonte. A historiografia tende a localizar o início da Maria da Fonte na Póvoa de Lanhoso, ou em Vila Verde

(freguesias de Prado, Pico de Regaldos, etc.) mas José de Freitas Costa (n. 10/11/1833 e m. 1905), um vimaranense que conviveu com alguns dos protagonistas da Maria da Fonte, não tem dúvidas em dizer que «revolução» começou em Guimarães.

Vejamos o que nos diz Freitas Costa, no seu texto «Guimarães no Tempo da Maria da Fonte», publicado no jornal «O Progresso» entre 1899 e 1901: «A revolução popular de 1846 denominada do Minho, ou da Maria da Fonte, mas que também ficou se chamando Revolução de Maio, por ser no mês de Maio que ela se estendeu a quase todas as terras das províncias do norte, assim como a outros pontos do país, e por ser também nesse mês que se deu à queda do ministério que a provocara, não teve o seu princípio na Vila do Prado, nem em 15 de Abril, como se tem dito, mas sim nas freguesias do concelho de Guimarães, no dia anterior ao dessa data. E se da prioridade de datas maior glória resulta para as freguesias que mais se anteciparam em fazer ouvir o grito revolucionário, maior quinhão deve caber à de S. Torcato, que já em 27 de Março se havia manifestado contra a nova lei de saúde pública, chegando a apedrejar não só os empregados que ali foram para a fazer cumprir mas também o destacamento que estava em Guimarães e que nesse mesmo dia correu a auxilia-los.

Como porém nessa ocasião os sinos não tocaram a rebate, não obstante os soldados terem feito uso das armas, e como o rebate haja sido uma das manifestações mais características da Revolução do Minho, não a faremos datar em 27 de Março mas sim de 14 de Abril, dia em que ele se fez ouvir, rijo e continuado desde os campanários de Balazar e Sande até ao de Santa Eulália de Fermentões.

E não foi pequeno o alarme que esse rebate produziu em Guimarães! Tanto mais por lhe chegar acompanhado da repercussão de alguns tiros, assim como de notícias muito desfavoráveis acerca das intenções dos sublevados.

Informado delas, o Administrador do Concelho, João António de Oliveira Cardoso, como por essa ocasião a vila se achasse sem guarnição militar, mandou logo reunir os cabos de polícia no Terreiro da Misericórdia, e com eles os seus empregados também armados. Sabendo que os amotinados se haviam apoderado de algumas armas da polícia das aldeias, e exigindo dos regedores a entrega de uns impressos que tinham em seu poder (…) nem por isso se sentiu descoroçoado com o receio que eles viessem repetir igual exigência dentro da vila; reunidos que foram os seus subordinados, auxiliados por alguns particulares que se lhe ofereceram para os acompanhar, dirigiu-se à ponte de Santa Luzia, para aí ordenar e delinear a defesa que projectava.

Chegados que foram ao meio da ponte, avistaram logo (…) uma cerrada coluna de populares, prestes a desce-la seu tambor à frente, mas cujo som mal se fazia ouvir de tão abafado que o tornava ensurdecedora vozeria com que levantavam seu furioso grito de guerra: viva a rainha e tributos abaixo!

Avisados para que não avançassem, não só desprezaram o aviso, como trataram de acelerar o passo. O resultado da sua teimosia foi o serem recebidos com alguns tiros dos quais um, posto que feito como todos os outros, com pontaria alta, ou em direcção de os não alvejar, foi acertar num pobre homem, que nada tinha com os combatentes mas vítima da sua curiosidade caiu mortalmente ferido (…).

A debandada dos populares foi imediata; ainda chegaram a disparar algumas das poucas armas que traziam, o abalo que sentiram com o inesperado choque foi tão forte que, impedidos por ele, só pararam à distância de não poderem ser alcançados pelas balas da polícia, ainda que fossem de triplicado alcance

Pouco depois (…) já rebate igual ao do dia anterior começava de lhe soar aos ouvidos, parecendo-lhe vindo lá dos memos lados. E não se enganava; eram realmente os mesmos sinos, que na véspera anunciaram a vinda do povo, os que agora estavam sendo tangidos com igual fúria e desespero, se não maior ainda. Tratou pois de se por à frente da polícia e dos indivíduos que no dia anterior a haviam acompanhado à Ponte de Santa Luzia, e com eles correu a ocupar esse mesmo posto. Ali chegado, notou que os tiros que nesse momento se estavam ouvindo, eram mais vivamente repetidos e como que disparados em combate que se estava ferindo. Não se enganou também: esses tiros eram efectivamente resultantes da perseguição que os populares vinham fazendo desde Sande a um destacamento do 8 que de braga se dirigia a Guimarães (…).