Fonte: Cinemateca Portuguesa
Fotograma do filme "Romaria de São Torcato" de 1917.
Fonte: Cinemateca Portuguesa
"Acabado o Acto Académico (...) se passou outro teatro não menos divertido em que os olhos acharam um novo arsenal com abundante provimento de deleitáveis regalos para a vista. Era este teatro a mesma praça onde o brilhante das muitas mil luzes fazia um clarão tão grande que desmentia o tempo porque ninguém via a noite. Achava-se povoada de 6 para 7 mil pessoas porque não concorreram a ver tão lustroso espectáculo os moradores de toda a Vila mas os de muitas povoações da sua vizinhança, convidados pelo alegre ruído (...). Iluminaram-se inteiramente todas as cinco máquinas que adornavam a praça e pareciam outras tantas constelações, cujos nítidos fulgores influíam uma gostosa complacência a todos os circunstantes. Deu-se ordem para começarem a correr as fontes do generoso licor que ao mesmo tempo alenta e alegra quem dele faz bom uso. Mandou-se entregar ao Povo para repartir entre si aquele utilíssimo Bruto [um boi] que até então havia servido de símbolo da paz, sem que esta circunstância o desmentisse (...). E, como a grandeza se manifesta pelos desperdícios, se mandaram lançar das janelas do Palácio à plebe mais de dois mil pães e vários cestos de frutas e de doces. Novo género de divertimento foi também a sofreguidão com que muitos, ao mesmo tempo, queriam aparar o pão, alcançar o vinho e não ficar sem carne; porém em todo este alegre tumulto não se viu desordem (...) antes se ouvia repetir com cordial alvoroço muitas vezes: viva El-Rei, vivam as Magestades, vivam os Príncipes!(...).
Três horas que o não pareceram se gastaram neste aprazível divertimento, nunca imaginado das mais elevadas ideias dos antigos e tão fácil hoje aos engenhos modernos (...). Acabou-se [assim] a festividade deste dia de tanto crédito de Guimarães (...). FIM."
"Para que a dilatada lição (...) se não fizesse fastidiosa aos ouvintes se alternaram com uma serenata e uma Loa feita expressamente para aplauso dos dois Régios Consórcios dividida em duas partes, a primeira composta pelo Doutor Manuel Lopes de Araújo; a segunda pelo Secretario Amaro José de Passos (...). As pessoas que foram interlocutores nestas duas Loas eram os melhores músicos que se conhecem nestes distritos e faziam as figuras da Fama, do obséquio, da Vila de Guimarães e dos dois Coutos de Abadim e Negrelos de que é Senhor o autor da festividade desse dia. (...) Nos intervalos destas diferentes cenas se distribuíram abundantemente por todos os circunstantes em confeiteiras, bandejas e salvas de prata (...) grandes quantidades de doces de várias castas e todos selectos; para o que havia o Senhor de Abadim tido a prevenção de mandar buscar a certos Mosteiros de Lisboa, Évora, Coimbra, Porto, Lamego e Ponte de Lima (...). Não faltou bebida delicada das que apesar dos néctares e ambrósias soube inventar a Arte, avantajando nas delícias os Homens aos Deuses (...).
"Farei só uma breve memória do que vestiu nesse dia o autor da festa. Compunha-se esta de uma casaca escarlate primorosamente bordada de ouro e prata e relevada a bordadura com alcachofras de canotilhos; de uma vestia um estofo coalhado de ouro brilhante a que o moderno vocabulário chama glacê. A venera da Ordem de Cristo (...) de ouro guarnecida de preciosos diamantes; e da mesma matéria e guarnição eram a fivela, botão e presilha do chapéu, copo e guarda do espadim e fivelas dos sapatos.
Seguiu-se um sumptuoso banquete para o qual convidou 56 pessoas da principal Nobreza da Vila, Dignidades e Cónegos da Real Colegiada de N. Senhora de Oliveira, o Tesoureiro-Mor da Sé de Braga, os Prelados das Religiões e os Ministros da Justiça (...). Três vezes se cobriu a mesa e de cada uma com 36 pratos dos mais deliciosos, mais delicados e mais esquisitos. Nas duas primeiras foram servidos os convidados em prata; na terceira em porcelana do Japão e da China. Durou este gostoso divertimento até ao por do Sol.
Chegada a noite (se a houve nesse dia) passaram os hóspedes a um salão onde na parede principal, debaixo de um docel de brocado de ouro, se viam os retratos dos quatro príncipes casados (...). As paredes se guarneciam e ilustravam com 10 grandes e excelentes placas de prata e outras tantas serpentinas do mesmo metal, curiosamente lavradas; a dois e três lumes cada uma. Passavam de 150 as luzes com que iluminava esta a casa. Nela se achavam os Atletas da Academia Vimaranense, e na presença de mais de 300 pessoas (...) recitaram quatro Orações Panegíricas e muitas Poesias elegantes. Deu princípio a este acto académico, por uma elegante oração, o Secretário da mesma Academia, Amaro José de Passos, a quem o senhor de Abadim agradeceu este trabalho com um anel de diamantes e um livro histórico.
Fez o segundo panegírico o dr. Francisco Rebelo Leitão, corregedor da vila, a quem o senhor de Abadim manifestou o seu agradecimento com um relógio e o Epitome da História de Portugal.
Orou em terceiro lugar em língua latina correcta e elegantemente o dr. Manuel Lopes de Araújo, a quem o senhor de Abadim agradeceu com outro igual relógio e as primeiras Crónicas deste reino. Disse o quarto panegírico o mesmo Senhor de Abadim na língua castelhana, que apesar de estrangeira, nada ficou prejudicada na sua natural elegância; e foram seu prémio as vozes com que a fama começou deste dia a decorar para as repetir perpetuamente com plausíveis brados em grande crédito de Guimarães, sua Pátria, que se confederaram na sua pessoa com sua magnanimidade, a gentileza, a galhardia, o estudo, a discrição e o zelo na glória do seu Rei (...)."
"Todo o frontispício da Igreja da Misericóridia se transfigurou em outro de luzes de primoroso artefacto e todas as mais casas que formam as faces daquela praça se cobriram de velas e grizetas sem número. Levantaram-se nos quatro cantos quatro pirâmides formadas sobre arcos; revestido tudo de encarnado e prata e adornado de vários remates e decorações: Por cada arco se entrava em um bosque de frondosos ramos e de todos os quatro bosques rebentavam outras tantas fontes de excelente vinho. No centro da praça se erigiu um padrão sobre quatro colunas cujos capiteis serviam de base a outras tantas pirâmides; e nestas se davam a ler as augustas ascendências dos quatro Príncipes Contraentes desta nova e feliz aliança das duas Coroas; com a distinção dos nomes dos seus esclarecidos progenitores e dos graus que pela ordem da natureza lhes pertenciam. (...)
Debaixo desta máquina, no vão dos quatro arcos, que se formavam entre as quatro colunas referidas, estava um boi vivo; não destinado a ser vítima de Cibeles; (...) mas como símbolo da paz que estas alianças prometem tão durável aos súbditos de ambos os Domínios. Disposto assim tudo na forma referida, começou a festa pelo pomposo das galas e como é como é impossível descrever a riqueza e bom gosto de todas em uma Povoação em que há tanta Nobreza e tantos Morgados Ricos."
No folheto de que fala Padre Caldas, O GUIMARÃES FESTIVA, a festa de 1728 é descrita na íntegra. Proponho aos leitores que acompanhem esse relato (cujas partes mais interessantes tenciono transcrever) começando pela descrição do palácio onde decorreram os festejos – a Casa dos Carvalhos no Largo da Misericórdia.
“É situado o Palácio que este Fidalgo tem naquela Vila na praça da Misericórdia (...). Tem uma magnífica fachada de 200 palmos de extensão, com janelas à moda adornadas de colunas de excelente mármore e uma sumptuosa simalha povoada de ameias, hieróglifo da sua nobreza e antiguidade. Fica-lhe uma parte contígua e como cabeça deste corpo uma alta Torre de duas ordens de espaçosas janelas adornadas de colunas de excelente mármore, que a grandeza do Senhor Rei D. João III no tempo em que se fazia esta obra mandou a Gaspar de Carvalho, Senhor de Abadim e Negrelos, que foi seu Embaixador Extraordinário na Corte de Espanha, 4º avô deste Cavalheiro; as quais por dádiva de mão tão soberana, contra o gosto da moderna arquitectura, se conservam na mesma forma depois de reedificada a Torre. Esta se coroa com um zimbório guarnecido de pirâmides e ameias e é o seu remate uma figura de bronze de altura de oito para nove palmos, que empunha com a mão direita uma espada e embraça com a esquerda um escudo, representando um Anjo ou, como tutelar da Vila, ou como o símbolo do valor com que os Senhores desta Casa a sustentaram em outro tempo na obediência dos seus Reis naturais e a defenderam sempre contra a expugnação dos seus opostos.
Toda esta fachada de Palácio e Torre, não só as suas janelas mas por todo o pano da parede até o nível da rua se guarneceu de tochas de cera branca, e tão juntas umas das outras que faziam uma maravilhosa e agradável perspectiva: Imagem da misteriosa Zarça, toda a casa se via arder e não se consumia. Todo o interior do Palácio, pátio, escadas e galeria se achava da mesma forma iluminado excedendo só as tochas o número de mil. "
Imagem roubada aqui.
Segundo nos diz o Padre Caldas, “o entranhado amor que os filhos de Guimarães votaram sempre aos seus monarcas e príncipes, nunca se manifestou dum modo tão brilhante e excepcional, como na ocasião dos reais desposórios do príncipe do Brasil (futuro Rei D. José I) com a princesa das Astúrias D. Maria Ana Victória de Bourbon. Os deslumbrantes festejos, que por tal motivo tiveram aqui lugar nos dias 5, 6, 7 e 8 de Fevereiro de 1728, constam dum breve e raro folheto com o título de GUIMARÃES FESTIVA, dedicada ao nosso ilustre patrício Tadeu Luís António Lopes de Carvalho, e por mim obtido da excelente livraria do meu mestre e amigo Pereira Caldas.
Os festejos públicos nos três primeiros dias foram reais e deslumbrantes, e redobrariam por certo de magnificência, se o não viesse impedir - como diz o autor da RELAÇÃO DOS FESTEJOS – uma espécie de diferença, em que se achava neste tempo o senado da vila com o cabido da colegiada. Mas esta diferença, que estorvou um pouco tão solenes demonstrações, foi superabundantemente suprida pelo patriotismo do senhor de Abadim e Negrelos, que terminado a 7 de Fevereiro o tríduo festivo da vila, quis se continuasse mais um dia o aplauso, e que nesse corresse por sua conta a despreza do festejo.”